Do recolhimento do espírito: § III. Do andar na presença de Deus

Nesta meditação, Santo Afonso fala sobre o andar na presença de Deus. Nas palavras do próprio santo, “Consiste ele nisso: que se evite o pecado, se pratique a virtude e se una mais intimamente possível com Deus”. Veja o que mais Santo Afonso diz sobre isso.

A. Benéficos efeitos do andar na presença de Deus

O andar na presença de Deus é chamado, com razão, o fundamento da vida espiritual. Consiste ele nisso: que se evite o pecado, se pratique a virtude e se una mais intimamente possível com Deus. Ora, são justamente essas três coisas que opera o andar na presença de Deus; ele conserva a alma afastada do pecado, excita-a à prática da virtude e faz que ela se una a Deus por meio de seu santo amor.

1. Quanto ao primeiro efeito, a preservação do pecado, não há meio mais eficaz para refrear as paixões, para resistir às tentações e, consequentemente, para evitar o pecado do que a lembrança da presença de Deus. S. Tomás diz: “Se pensássemos sempre na presença de Deus, nunca faríamos, ou então só raramente, coisa alguma que lhe desagradasse” (Opusc. 58, c. 2). Segundo S. Jerônimo, a recordação da presença de Deus fecha a porta a todos os pecados. E, de fato, se os homens não ousam transgredir, em presença de seus príncipes, de seus pais ou superiores, os seus preceitos, como poderiam infringir os mandamentos de Deus se pensassem que ele os vê?

S. Ambrósio conta que, durante um sacrifício que Alexandre Magno oferecia no templo, um pajem preferiu deixar-se queimar a mão a cometer a irreverência de deixar cair a tocha que sustinha. Ora, se o respeito para com seu rei pôde fazer que esse jovem, para não faltar com ele, vencesse a natureza, quanto mais poderoso, ajunta o santo doutor, não será o pensamento da presença de Deus para levar uma alma crente a vencer todas as tentações e a suportar antes todos os tormentos do que ofender a seu Deus e Senhor diante de seus próprios olhos.

Os homens, só por isso, caem em pecado, porque perdem de vista a presença de Deus. “A causa de todo o mal, diz S. Teresa, está em que não pensamos na presença de Deus, mas antes o julgamos muito longe de nós” (Cam. da perf., c. 29). Antes dela já o dissera David: “Não há Deus diante dele: por isso seus caminhos são manchados em todos os tempos” (Sl 10, 5). O Abade Díocles chega até a dizer que aquele que perde da memória a presença de Deus, torna-se um animal ou um demônio. E ele tem razão: porque um tal homem será sempre assaltado por seus desejos sensuais ou diabólicos e não terá a força para resistir-lhes.

Doutro lado, os santos acham neste pensamento, de que Deus os está vendo, a força para resistir a todos os ataques do inimigo. Esse pensamento outorgou à casta Susana a coragem para repelir os dois libertinos que a queriam seduzir ao pecado, apesar de a terem ameaçado com a morte. “Prefiro antes cair, sem esse pecado, nas vossas mãos, disse ela com inabalável constância, do que pecar na presença de Deus” (Dan 13, 23).

Esse pensamento converteu a uma mulher depravada, que não se envergonhara de tentar S. Efrém ao pecado. O Santo dissera-lhe que, se quisesse pecar, deveria ir com ele no meio da cidade. “Mas como se poderá cometer um tal pecado na presença de tanta gente?” perguntou-lhe ela. “E como se poderá pecar na presença de Deus, que vê tudo?” respondeu-lhe o santo. Ouvindo essas palavras, rompeu em pranto a pobre pecadora, pediu perdão ao santo e adjurou-o a que a auxiliasse no caminho da salvação. S. Efrém internou-a em um claustro, onde levou uma vida edificante e chorou até à morte os seus pecados (Metaphrast., Vit. Sti. Ephr.).

Coisa semelhante se deu com o santo Abade Pafúncio a respeito de uma outra pecadora chamada Taís, que lhe dissera que ninguém haveria de ver seu pecado, além de Deus. O santo respondeu-lhe, com voz muito grave: “Crês, portanto, que Deus te vê, e queres entretanto pecar?” Taís sentiu-se ferida por essas palavras, entrou em si e começou a detestar sua vida vergonhosa: trouxe seus móveis, seus vestidos e jóias, que adquirira por sua vida escandalosa e, amontoando tudo isso em uma praça pública, ateou-lhe fogo, e dirigiu-se em seguida para um convento, onde jejuou durante três anos a pão e água, repetindo as palavras: “Ó vós que me criastes, tende piedade de mim!” Decorridos esses três anos, teve uma santa morte. Logo após sua morte, foi revelado a um discípulo de S. Antão, Paulo, o Simples, que essa feliz pecadora recebera um trono de glória entre os santos do céu (Vita Pat., l. 1).

O pensamento na presença de Deus nos ajuda, pois, a evitar o pecado. Digamos, portanto, ao Senhor, com o piedoso Job: “Ponde-me, Senhor, junto de vós, e arme-se contra mim a mão de quem quer que for” (Job 17, 3). Ó meu Deus, fazei-me lembrar de vossa presença, fazei-me pensar por toda a parte que vós me vedes; que venham então os meus inimigos, que eu certamente os vencerei. S. João Crisóstomo diz: “Se nos conservarmos sempre na presença de Deus, não só não pensaremos em coisas más, mas também não as diremos, nem as faremos, porque estaremos persuadidos que Deus observa todas as nossas ações, ouve todas as nossas palavras e vê todos os nossos pensamentos” (In Filip h. 8).

2. Quanto à prática das virtudes cristãs, é a recordação da presença de Deus igualmente um poderoso meio para isso. Com que valentia não combatem os soldados na presença de seu rei! O pensamento de que os observa o príncipe, que os pode recompensar ou punir, aviva sua coragem e força em alto grau. Se igualmente pensássemos que, em tudo que fazemos, o olho de Deus está voltado para nós, certamente nos esforçaríamos para fazer tudo bem e com pura intenção, sem buscar outra coisa que o exclusivo agrado de Deus e sem nos importar com os homens.

S. Basílio diz: “Se alguém se achasse na presença de seu rei e de um simples camponês, certamente procuraria agradar ao rei, sem se incomodar muito com o que agradasse ao camponês; da mesma forma se esforça aquele que anda na presença de Deus a agradar unicamente a Deus, seu Senhor, que observa todos os seus atos e não às criaturas”.

3. Quanto ao terceiro efeito, a união com Deus, é verdade incontestável que o amor é alimentado pela presença do objeto amado; isto se dá até com os homens, apesar de descobrirem tanto mais faltas em nós quanto mais convivem conosco. Muito mais se aumentará, pois, o amor de Deus na alma, se ela o tiver continuamente diante dos olhos porque, quanto mais se trata com ele, tanto mais brilha sua beleza e amabilidade.

Para se permanecer em união contínua com Deus não basta fazer uma meditação, de manhã e à noite. Se se retira do fogo a água fervendo, diz S. Crisóstomo, retoma logo a sua natural frieza. Por isso deve-se estar atento a conservar, fora da meditação, o fogo do amor por meio da recordação contínua da presença de Deus. O venerável Henrique de Suso se dedicou com especial zelo a este santo exercício e chegou a tal grau de perfeição, que se entretinha sem interrupção com Deus por meio de aspirações amorosas. S. Gertrudes alcançou também tal perfeição nesse ponto que o Salvador, referindo-se a ela, disse a S. Mechtildes: “Essa alma, minha muito amada, anda sempre na minha presença e se esforça sempre por cumprir a minha vontade e fazer todas as suas ações para minha maior glória” (Insin., l. 1, c. 12).

S. Bernardo quando, nos seus primeiros anos de vida religiosa, se sentia desanimado ou tíbio, pensava em alguma pessoa piedosa, quer ausente, quer mesmo falecida, e isso bastava, como ele mesmo conta, para que a alegria e o fervor no amor de Deus voltassem imediatamente à sua alma. Quanto mais útil não será, pois, para uma alma que ama a Deus o pensamento de que Deus está perto dele e deseja o seu amor. David sentia-se cheio de alegria e consolação ao só pensar em seu Deus: “Lembrei-me de Deus e me deleitei” (Sl 76, 4).

Por mais aflita e desconsolada que se ache uma alma, se ela ama a Deus, se sentirá certamente consolada logo que pensar em seu mui amado Senhor. Por isso, aqueles que estão cheios do amor de Deus conservam a tranquilidade e a paz, porque, assim como girassol se volta sempre para o sol, também eles, em tudo que lhes sucede e em tudo o que fazem, se esforçam por ter a presença de Deus diante dos olhos. “Quem ama verdadeiramente, diz S. Teresa, pensa sempre no objeto amado” (Vida, c. 13).

B. Diversos modos de se por na presença de Deus

Quero explicar-te agora, alma cristã, como podes te transportar à presença de Deus. Esse ato se exerce em parte pelo entendimento, em parte pela vontade: por meio do entendimento deve-se representar a Deus presente; por meio da vontade deve-se unir a ele, fazendo-se atos de humildade, adoração, amor e semelhantes.

I. — Tendo-se em vista o entendimento, podemos nos por na presença de Deus de diversas maneiras.

1. O primeiro modo consiste em nos representar que Jesus Cristo, nosso Salvador, nos acompanha e nos vê por toda a parte. Podemos no-lo representar ora neste, ora naquele mistério; por exemplo, ora como um menino no presépio de Belém, ora como pobre exilado na fugida para o Egito, ora como operário na oficina de Nazaré, ora como homem de dores, que é condenado à morte como um criminoso, flagelado, coroado de espinhos e pregado na cruz.

S. Teresa aplaude muito esta maneira de se colocar na presença de Deus. Devo, contudo, notar que, se ela é boa, não é, contudo, a maneira melhor e nem sempre é útil, e isso por dois motivos: primeiro, ela não corresponde inteiramente à verdade, porque Jesus Cristo não nos está continuamente presente ao mesmo tempo como Deus e homem, mas só depois da comunhão ou no SS. Sacramento; segundo, essa maneira de se por na presença de Deus pode dar facilmente ocasião a enganos ou, ao menos, cansar muito a cabeça pelo grande esforço da fantasia. Querendo-se servir dela, faça-se, pois, com cuidado, sem se querer representar forçosamente os traços, a cor do rosto ou a fisionomia do divino Salvador: basta que o julguemos presente em uma figura indeterminada e nos representemos que ele vê tudo o que fazemos.

2. O segundo modo de se colocar na presença de Deus é muito seguro e preferível, pois que se baseia sobre uma verdade da fé. Consiste em vermos, com os olhos da fé, a Deus presente em toda a parte e nos compenetrarmos vivamente da verdade que ele está continuamente conosco e observa todas as nossas ações.

Não importa que não o vejamos com os olhos do nosso corpo. Também não vemos o ar e, contudo, nem de longe duvidamos que ele nos circunda de todos os lados, pois, do contrário, não poderíamos respirar, nem viver.

Não vemos a Deus, mas a fé nos ensina que ele nos está continuamente presente. “Porventura não encho eu o céu e a terra?” (Jer 23, 24), diz ele pela boca do profeta. Nós estamos em Deus de um modo semelhante ao de uma esponja no mar, que está circundada pela água e toda impregnada dela. S. Paulo diz: “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17, 28). Ele, que é nosso Deus, diz S. Agostinho, observa todas as ações, todas as palavras, todos os pensamentos de cada um de nós com tal cuidado, como se tivesse esquecido todas as outras criaturas, para nos dispensar toda a sua atenção. Mas Deus não só vê todas as coisas que fazemos, dizemos e pensamos, como também registra tudo, para exigir contas de nós, no dia do juízo, e nos recompensar ou castigar segundo os nossos méritos.

Este segundo modo de pensar na presença de Deus não cansa o espírito, pois basta excitar um ato de viva fé, dizendo-se interiormente: Ó meu Deus, creio firmemente que estais aqui presente. Pode-se também juntar, a esse, atos de amor, de resignação, boa intenção e outros semelhantes.

3. O terceiro modo de conservar a recordação da presença de Deus consiste em considerar a Deus nas criaturas, que dele recebem seu ser e foram destinadas para o nosso uso. Deus está na água que nos purifica, no fogo que nos aquece, no sol que nos ilumina, na comida que nos sustenta, em todas as coisas que criou para nossa utilidade. Se, por isso, virmos qualquer objeto belo, como um magnífico jardim, uma delicada flor, pensemos que nessa criatura se reflete um fraco raio da infinita beleza de Deus, daquele Deus que deu o ser a essas coisas. Se falamos com um santo ou com um sábio, pensemos que é Deus que lhe comunicou uma partezinha de sua santidade ou sabedoria. Se ouvimos uma música deleitosa, se certos perfumes nos agradam, se comidas e bebidas nos satisfazem, pensemos que é Deus que nos distribui esses dons com o fim de elevar nosso coração para ele por meio dessas coisas e fazê-lo aspirar às alegrias eternas do céu.

Acostumemo-nos, pois, alma cristã, a ver em todas as coisas a Deus, que se nos apresenta nelas e façamos amiudados atos de agradecimento e de amor, lembrando-nos que Deus, desde toda a eternidade, pensou em operar tantos milagres de onipotência para ganhar os nossos corações. “Apressa-te a amar na criatura o Criador, diz S. Agostinho, e não prendas o teu oração naquilo que Deus fez, para que não percas, pela entrega de ti mesmo às criaturas, aquele que te criou”. Conforme isso procedia esse grande santo; à vista das criaturas elevava seu coração a Deus, e, inflamado em amor, exclamava: “Céu e terra e tudo o que neles existe me clama que eu devo vos amar”. Se eu considero o céu, as estrelas, os campos, os montes, queria dizer o santo, então parece-me que me clamam: “Agostinho, ama a teu Deus, porque ele nos criou unicamente para que o possas amar”.

À vista de encantadoras campinas, lagos, regatos ou outras belas coisas, S. Teresa parecia ouvir as repreensões dessas criaturas acusando-a de ingratidão para com seu Deus. S. Maria Madalena de Pazzi ficava cheia de admiração e inflamada em amor quando tinha nas mãos uma bela flor ou fruta, e dizia consigo mesma: Deus, pois, pensou desde toda a eternidade em criar esta flor e esta fruta, para ganhar o meu amor!

Um santo homem, chamado Simeão Saulo, costumava bater com seu bordão nas flores e plantas quando atravessava os campos, dizendo: Calai-vos, já basta; calai-vos, pois me lançais em rosto que amo pouco a esse Deus que vos fez tão belas por amor de mim e para me atrair a ele por meio de vós. Já entendo o que quereis dizer: basta, calai-vos!

4. O quarto meio, que é o mais perfeito, para conservar sempre viva em nós a recordação da presença de Deus, consiste em vermos a Deus em nós mesmos.

Não é preciso subir ao céu para achar a Nosso Senhor; precisamos só nos recolher um pouco e o encontraremos em nós mesmos. Quem se representa a Deus na oração, como muito distante, se cria assim uma fonte de muitas distrações. S. Teresa diz: “Nunca fiquei sabendo perfeitamente o que era rezar bem, até que Deus mesmo me ensinou o verdadeiro modo de conversar com ele. Eu comecei então a me aprofundar no meu interior e isso se evidenciou como muito útil para minha alma” (Cam. da perf., c. 30).

Deus está presente em nós de um modo mui diferente do que nas outras criaturas: em nós mora o Senhor como em seu templo, em sua casa: “Não sabeis que vós sois templos de Deus e que o Espírito Santo habita em vós?” (1 Cor 3, 16). Por isso nos diz o divino Salvador que ele, com o Pai e o Espírito Santo, faz sua entrada na alma que o ama, para aí permanecerem, não um momento, mas para sempre. “Se alguém me amar, meu Pai também o amará e nós viremos e faremos nele a nossa morada” (Jo 14, 23).

Os reis desta terra moram em grandes palácios; mas neles possuem aposentos especiais, nos quais geralmente habitam. Coisa semelhante se dá com Nosso Senhor: ele está por toda a parte, sua presença enche o céu e a terra; mas, de um modo especial, habita nas nossas almas, onde se demora com especial gosto, como em outros tantos jardins de delícias. “Eu habitarei neles, assim fala Deus pela boca do Apóstolo, e andarei entre eles e serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (2 Cor 6, 16).

Ele mora nos nossos corações e aí quer ser amado de nós e por nós invocado, pois ele está no meio de nós, cheio de amor e bondade, para atender às nossas súplicas, receber provas de nosso amor, para proteger-nos e iluminar-nos, dirigir-nos e comunicar-nos seus bens, para auxiliar-nos em tudo que pode servir para nossa salvação.

Procuremos, pois, avivar a nossa fé nessa verdade e humilhemo-nos diante de tão sublime majestade que se digna morar em nós. Façamos muitas vezes atos de confiança, de entrega de nós mesmos e de amor para com a infinita bondade de Deus; demos-lhe graças por seus favores; alegremo-nos com sua glória; peçamos-lhe conselhos em nossas dúvidas e consideremo-nos muito felizes por possuirmos nele o sumo bem, sem precisarmos temer que poder algum criado no-lo possa roubar jamais, ou que ele mesmo nos abandone, a não ser que nós mesmos o expulsemos de nosso coração.

S. Catarina de Sena, como ela mesma nos conta, edificou no seu interior uma cela e aí se entretinha sem interrupção em amorosas conversações com seu Deus e Senhor; aí se indenizava da proibição imposta por seus pais de não se recolher a seu quarto para rezar. E nessa pequena cela encontrou ela muito mais do que poderia achar no seu quarto, desde que deste teria ela de sair repetidas vezes, ao passo que nunca teve de abandonar aquele santuário interior, mas, antes, permaneceu sempre nele cheia de recolhimento e devoção.

Falando uma vez S. Teresa dessa presença de Deus em nosso coração, disse: “Aqueles que desse modo se recolhem ao pequeno céu de sua alma, onde impera aquele que o criou, podem estar certos que trilham um caminho seguro; dentro de pouco tempo terão vencido uma grande parte do caminho” (Cam. da perf., c. 20).

5. Se me perguntares, alma cristã, quantas vezes no dia deves te por na presença de Deus, respondo-te com S. Bernardo (De int. dom., c. 27), que o deves fazer todos os instantes, pois, como não há um momento, diz o Santo, em que não gozemos dos benefícios de Deus, assim também não devemos deixar passar um instante sem pensar em Deus e lhe testemunhar nossa gratidão. Se alguém soubesse que seu rei sempre pensava nele e em seu bem-estar, certamente haveria de amar ternamente um tal príncipe e nunca se esqueceria dele, mesmo no caso que essa afeição não lhe trouxesse nenhum proveito.

É, porém, fora de dúvida que Deus se ocupa constantemente contigo e te beneficia sem cessar, ora com inspirações, ora corroborando tua vontade, ora com outras provas de ternura. Não serias talvez réu de uma grande ingratidão se te esquecesses dele, ainda que por pouco tempo? Devemos, pois, nos esforçar para pensarmos na presença de Deus sem interrupção ou, ao menos, quantas vezes nos for possível.

Nosso Senhor dirigiu ao patriarca Abraão estas palavras: “Anda diante de mim e sê perfeito” (Gn 17, 1), o que quer dizer, procura andar sempre na minha presença, e serás perfeito. Semelhante conselho deu a seu filho o piedoso Tobias: “Meu filho, nunca percas a Deus de vista durante tua vida inteira”. Perguntando Dosíteo a seu mestre, S. Dorotéo, o que se devia fazer para se santificar, recomendou-lhe também ele que andasse sempre na presença de Deus: “Lembra-te sempre, lhe disse, que Deus está ao pé de ti”. Dosíteo, que fora antes um soldado depravado, seguiu esse conselho e atingiu, em cinco anos, um tal grau de perfeição que foi visto, depois de sua morte, entre os mais santos anacoretas.

II. — Até aqui só falei do ato do entendimento; quero agora mostrar-te, alma cristã, como tua vontade deve participar nesse santo exercício da presença de Deus. Antes de tudo deves notar que só aos santos, no céu, é dado permanecer sem interrupção diante de Deus em sua incessante visão; aqui na terra é humanamente impossível se conservar incessantemente na presença de Deus; apesar disso, devemos tender a isso tanto quanto possível, não como desassossego de ânimo e excessivo esforço, mas com calma e resignação.

De três modos pode a nossa vontade cooperar nesse empenho:

1. Primeiramente podemos elevar o nosso coração a Deus muitas vezes por meio de orações jaculatórias e aspirações amorosas, curtas mas fervorosas. Tais atos se podem praticar em qualquer lugar e a qualquer hora. Seja qual for a tua ocupação, poderás sempre, de tempos a tempos, elevar teu coração a Deus e dizer:

Ó meu Deus, só a vós desejo e nada mais.
A nada mais aspiro que pertencer inteiramente a vós.
Disponde de mim e de tudo que me pertence como vos aprouver.
Sacrifico-me por completo a vós.
Amo-vos mais que a mim mesmo.
Sacrifico-me por completo a vós.
Só quero o que quereis.
Por amor de vós renuncio a tudo o mais.
Eu vos agradeço todas as graças que me concedestes.
Ajudai-me, tende piedade de mim.
Dai-me o vosso santo amor.
Senhor, merecia arder agora no inferno.
Alegro-me com a vossa felicidade.
Desejo que todos vos amem.
Não permitais que vos seja outra vez infiel.
Coloco em vós toda a minha esperança.
Quando vos verei face a face?
Tudo que eu fizer ou padecer seja por vós.
Faça-se em tudo a vossa santa vontade!

Há momentos em que, de um modo especial, se deve esforçar para se avivar a fé na presença de Deus, a saber: de manhã, ao despertar, se deve dizer: Meu Deus, eu creio que estais aqui presente, e que estareis ao pé de mim em toda a parte em que hoje estiver; protegei-me sempre e não permitais que vos ofenda diante de vossos olhos; — no começo da meditação ou da oração vocal, pois quem reza distraído, diz o Cardeal Caracciolo, Bispo de Aversa, prova que foi negligente em excitar a fé na presença de Deus; — nas tentações contra a santa castidade ou a paciência; por exemplo, se fores acometido por uma dor veemente, se fores gravemente ofendido ou se um objeto desagradável te cair diante dos olhos, deves então imediatamente recordar-te da presença de Deus e te fortalecer com o pensamento de que ele te vê.

2. Um segundo meio para se conservar na presença de Deus pelos atos da vontade consiste em renovar repetidas vezes durante o trabalho a intenção de querer fazer tudo unicamente para agradar a Deus. No começo de todos os teus atos, quer comeces um trabalho, quer te dirijas à mesa, ou à recreação, ou ao descanso, deves sempre dizer contigo mesmo: Senhor, não quero fazer isto para minha satisfação, mas unicamente para cumprir a vossa vontade. Durante a ação mesma deves te esforçar para renovar a miúdo essa boa intenção, dizendo: Meu Deus, tudo para vossa glória.

Dessa maneira te conservarás perfeitamente e sem grande esforço na presença de Deus, visto que só o desejo de agradar a Deus já é uma recordação amorosa de sua presença.

Será igualmente bom se estabeleceres certos sinais ou ocasiões para te recordares mais facilmente da presença de Deus; por exemplo, ao bater do relógio, à vista do crucifixo, ao entrares ou ao saíres do quarto. Costumam alguns colocar em seu quarto um sinal especial, que os deve recordar da presença de Deus.

3. Um terceiro meio consiste em empregarmos ao menos alguns momentos para nos recolhermos em Deus, quando nossas ocupações nos distraem ou cansam muito. Se teu corpo não resistisse mais, por fraqueza, visto que o esforçaste muito ou jejuaste por longo tempo, não tomarias imediatamente um reconfortante, para que pudesses continuar teu trabalho? Quanto mais, pois, deves assim proceder para com tua alma, quando seu zelo ou o amor de Deus diminui, porque ela jejuou por muito tempo, isto é, descuidou-se da oração e do recolhimento.

Como costumava dizer o Pe. Álvarez, a alma sem a oração deve se sentir incomodada, como uma pedra fora de seu ponto de apoio ou um peixe fora d’água. Por isso se se passou longo tempo ocupado em trabalhos que distraem, deve-se procurar tomar novamente fôlego na solidão, recolhendo-se em Deus por meio de afetos e orações.

A bem-aventurança do céu consiste na visão e no amor de Deus. Nossa felicidade na terra deve consistir igualmente em amar a Deus e contemplá-lo, não face a face, como no céu, mas pela fé, considerando-o sempre presente. Quem assim proceder alcançará uma grande confiança e um ardente amor de Deus, seu sumo bem. Para um tal começa já aqui neste vale de lágrimas a vida dos bem-aventurados no céu, que sempre veem a Deus e, por isso, não podem deixar de amá-lo. Um tal homem despreza todas as coisas terrenas, porque sabe perfeitamente que tudo o mais desaparece em comparação de Deus; ele começa já aqui na terra a possuir aquele sumo bem que, mais que todos os outros bens, contenta os corações.


Santo Afonso Maria de LIGÓRIO. Escola da Perfeição Cristã. Obra compilada dos escritos de Santo Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja, pelo Pe. Saint-Omer, C. SS. R. Petrópolis (s. e.), 1955, p.259-267.

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