Malícia do pecado mortal

“Para nos induzir ao pecado, o demônio nos deixa ver o pecado somente à metade, mostrando-nos o deleite que nos traz e não o mal que encerra. ” Veja o que mais Santo Afonso fala nesta meditação sobre a malícia do pecado mortal.

Uma Alma em estado de Graça, e outra em pecado mortal.
Uma Alma em estado de Graça, e outra em pecado mortal.

Tetendit enim adversus Deus manum suam, et contra omnipotentem roboratus est — «Estendeu a sua mão contra Deus, e se fez forte contra o Todo-Poderoso» (Jó 15, 25).

Sumário. Para nos induzir ao pecado, o demônio nos deixa ver o pecado somente à metade, mostrando-nos o deleite que nos traz e não o mal que encerra. Consideremos, porém, que esta malícia, pela injúria que faz a Deus, é tão grande que, se todos os homens e anjos se oferecessem a morrerem ou  mesmo a aniquilarem-se, não poderiam satisfazer por um só pecado. Um verme da terra revolta-se contra a Majestade infinita. Ah, Senhor! pelo amor de Jesus Cristo, iluminai-me para compreender a malícia do pecado.

I. Que faz aquele que comete pecado mortal? Injuria a Deus. Segundo Santo Tomás, a malícia de uma injúria mede-se pela pessoa que a recebe e pela que a faz. A injúria feita a um arrieiro é um mal; feita a um nobre, é um mal maior; feita a um monarca, muito maior ainda.

Quem é Deus? É o Rei dos reis, o Senhor dos senhores: Dominus dominantium est et rex regnum (Apoc 17, 14). Deus é a Majestade infinita; perante Ele são menos que um grão de areia todos os príncipes da terra, todos os Santos e todos os Anjos do céu: Quasi stillae situlae, pulvis exiguus (Is 40, 15). O Profeta ainda acrescenta que diante da grandeza de Deus, todas as criaturas são de tal modo pequenas, que é como se não existissem: Omnes gentes quasi non sint, sic sunt coram eo (Is 40, 17). Eis aí o que é Deus.

E que é o homem? Saccus stercorum, cibus vermium  «Saco de esterco, pasto de vermes», responde São Bernardo. O homem é um vil montículo de corrupção, pasto dos vermes, que em breve o hão de devorar. O homem, continua o santo Doutor, é um verme miserável que nada pode, um pobre nu que nada tem. — E é este verme miserável que se atreve a injuriar a Deus; é este vilíssimo grão de pó que não hesita em excitar a cólera terrível da Majestade divina: Tam teribilem maiestatem audet vilis pulvisculus irritare!

Tem, pois, razão o Doutor Angélico em dizer que o pecado do homem contém de algum modo malícia infinita — Peccatum habet quamdam infinitatem maliliae, ex infinitate divinae maiestatis (Suma Teológica, III, q.2, c.2, ad.2). Santo Agostinho chama o pecado, de um modo absoluto, um mal infinito: infinitum malum. — D’onde se segue que todos os homens e todos os anjos não poderiam satisfazer por um só pecado, ainda que à morte e ao aniquilamento se oferecessem. Deus castiga o pecado mortal com o grande suplício do inferno; mas, qualquer que seja o castigo, todos os teólogos são unânimes em dizer que fica abaixo do que o pecado merece: citra condignum. E que pena poderia jamais castigar, como merece, o verme que se levanta contra seu Senhor?

II. Sendo tão grande e horrorosa a malícia de um pecado mortal, como é que ele é cometido tão frequentemente até por cristãos? «Isso é devido», responde São Leonardo de Porto Maurício, «a uma arte hábil do demônio, que nos mostra o pecado só pela metade; o que quer dizer que nos deixa ver o encanto e o deleite que nos traz o pecado e não a malícia e monstruosidade que ele encerra». Oh, se todos soubessem o que é o pecado mortal! Ao menos tu, meu irmão, a quem Deus concedeu a graça de meditar hoje na hediondez deste monstro, fica sempre longe, afastado dele. E se no passado tens ofendido o teu bom Deus, pede-lhe agora humildemente perdão.

É verdade, meu Senhor, Vós me haveis distinguido, acima dos outros, com os vossos benefícios; e eu Vos fiz objeto preferido das minhas ofensas, injuriando-Vos mais que a qualquer conhecido meu. Ó Coração angustiado do meu Redentor, que sobre a cruz fostes tão aflito e atormentado à vista de meus pecados, concedei-me, pelos vossos merecimentos, um claro conhecimento e uma viva dor dos meus pecados. Ah, meu Jesus, vejo-me cheio de vícios, mas Vós sois todo-poderoso; podeis, portanto, encher-me de vosso santo amor. Tenho confiança em Vós, que sois a bondade, a misericórdia infinita. Ó meu Bem soberano, pesa-me de Vos ter ofendido. Oxalá tivesse morrido antes de Vos ofender e nunca Vos tivesse causado desgosto!

Ó Senhor, eu vivi esquecendo-me de Vós, mas Vós não Vos esquecestes de mim; prova-m’o a luz que nesta hora me comunicais. Visto me haverdes dado a luz, dai-me também força para Vos ser fiel. Prometo antes morrer mil vezes do que voltar-Vos novamente as costas; mas as minhas esperanças estão em vosso auxílio: In te, Domine, speravi, non confundar in aeternum (Sl 30, 1) — «Em Vós, Senhor, esperei, não serei confundido». — A vós também, ó Maria, minha Soberana, me dirijo: In te, Domina, speravi, non confundar in aeternum — «Em Vós, ó Senhora, esperei; não serei nunca confundido». Ó minha Esperança, em vós confio que nunca tornarei a ser inimigo do vosso Filho. Rogai-lhe que me deixe antes morrer do que entregar-me a esta suprema desgraça. (*II 67.)


LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Segundo: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 306-309.