Do grande mal que é o desafeto de Deus

A ruína do pecado mortal é imensa. Faz-nos perder todos os merecimentos adquiridos, faz-nos escravo de Lúcifer, inimigo odioso de Deus e um condenado no inferno. Veja o que mais Santo Afonso explica nesta meditação. 

Uma Alma em estado de Graça, e outra em pecado mortal.
Uma Alma em estado de Graça, e outra em pecado mortal.

Similiter autem odio sunt Deo impius et impietas eius ― «O ímpio e a impiedade são igualmente odiosos a Deus» (Sab 14, 9).

Sumário. Considera quão grande é a ruína que traz consigo o pecado mortal. Faz-nos primeiro perder todos os merecimentos anteriormente adquiridos, por grandes e imensos que sejam. Além disso, de filho de Deus torna o homem escravo de Lúcifer; de amigo querido, inimigo sumamente odioso; de herdeiro do céu, um condenado no inferno. Se os anjos pudessem chorar, chorariam de compaixão vendo a desgraça de uma alma que comete pecado mortal e perde a graça de Deus. E nós ficaremos indiferentes?

I. Consideremos o miserável estado de uma alma em pecado mortal. Vive separada de Deus, seu soberano bem, de tal sorte que não pertence a Deus, assim como Deus não pertence a ela: Vos non populus meus, et ego non ero vester (Os 1, 9). Não só já não é dela, mas aborrece-a e condena-a ao inferno. ― O Senhor não odeia nenhuma das suas criaturas, nem mesmo as feras e as víboras: Nihil odisti eorum quae fecisti (Sab 11, 25). Mas o Senhor não pode deixar de odiar os pecadores. Sim, porque Deus odeia necessariamente o pecado, que é seu inimigo inteiramente contrário à sua vontade, e assim odiando o pecado, deve necessariamente odiar também o pecador que se conserva unido ao pecado; Similiter autem odio sunt Deo impius et impietas eius ― «O ímpio e a sua impiedade são igualmente odiosos a Deus».

Oh céus! Se alguém tem por inimigo um príncipe da terra, não pode mais dormir tranquilo, receando com razão a cada instante a morte. E o que tem por inimigo a Deus, como pode viver em paz? À ira de um príncipe pode-se fugir, já buscando esconderijo numa floresta, já ausentando-se para outro país; mas quem pode escapar às mãos de Deus? As vossas mãos, Senhor, exclamava Davi, quer eu suba aos céus, quer desça aos inferno, alcançar-me-ão em toda a parte: Etenim illuc manus tua deducet me (Sl 138, 10).

Desgraçados pecadores! Eles são amaldiçoados por Deus, amaldiçoados pelos anjos, amaldiçoados pelos santos, amaldiçoados até na terra por todos os sacerdotes e religiosos que todos os dias, ao recitar o Ofício divino, pronunciam esta maldição: Maledicti qui declinant a mandatis tuis (Sl 118, 21) ― «Amaldiçoados os que se apartam dos teus mandamentos». ― Além disso, o desafeto de Deus traz consigo a perda de todos os merecimentos. Ainda que algum tivesse merecido tanto como um São Paulo Eremita, que viveu 98 anos numa gruta; tanto como um São Francisco Xavier, que conquistou para Deus milhões de almas; tanto como o apóstolo São Paulo, que, segundo São Jerônimo, adquiriu mais merecimentos que todos os outros apóstolos: se cometesse um só pecado mortal, perderia tudo: Omnes iustitiae eius, quas fecerat, non recordabuntur (Ez 18, 24) ― «De nenhuma das obras de justiça que tiver feito, se fará memória».

II. Tão grande é, portanto, a ruína que traz consigo o desafeto de Deus: de filho de Deus faz o homem tornar-se escravo de Lúcifer; de amigo querido, inimigo sumamente odiado; de herdeiro do céu, um condenado ao inferno. Pelo que dizia São Francisco de Sales, que, se os anjos pudessem chorar, chorariam de compaixão vendo a desgraça de uma alma que comete pecado mortal e perde a graça de Deus. ― O que é, porém, mais triste, é que os anjos chorariam, se fossem suscetíveis de chorar, e o pecador não chora. Quando se perde um animal, uma ovelha, diz Santo Agostinho, já não se come, não se dorme, não se faz senão chorar; mas perde-se a graça de Deus, e come-se, dorme-se e não se chora!

Eis, pois, o triste estado a que me tenho reduzido, ó meu Redentor. Para me tornardes digno da vossa graça, haveis empregado 33 anos de suores e sofrimentos, e eu, por um instante de prazer envenenado, por um nada, a desprezei e perdi. Dou graças à vossa misericórdia, que me dá ainda tempo para a recuperar, se o quiser. Ah! sim, quero fazer tudo para a readquirir. Dizei-me o que devo fazer para obter o perdão. Quereis que me arrependa? Pois bem, ó meu Jesus, arrependo-me de todo o coração de ter ofendido a vossa bondade infinita. Quereis que Vos ame? Amo-Vos sobre todas as coisas, Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas.

No passado liguei demais o coração ao amor das criaturas e das vaidades. De hoje em diante, quero só viver para Vós, e só amar a Vós, meu Deus, meu tesouro, minha esperança e minha fortaleza: Diligam te, Domine, fortitudo mea (Sl 17, 2) ― «Amar-Vos-ei, meu Deus e minha fortaleza». Os vossos merecimentos, as vossas chagas, ó meu Jesus, devem ser a minha esperança e a minha força. É de Vós que espero a força de Vos ser fiel. Recebei-me, pois, na vossa graça, ó meu Salvador, e não permitais que jamais Vos abandone. Desprendei-me de todas as afeições mundanas, e inflame o meu coração no vosso santo amor. ― Maria, minha Mãe, fazei com que me abrase no amor de Deus, como sempre vos haveis abrasado. (II 88.)


Santo Afonso Maria de Ligório. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Terceiro: desde a duodécima semana depois de Pentecostes até ao fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p.45-48.