Do número dos pecados

“É sentimento de muitos Santos Padres, que Deus, assim como determinou para cada homem o número dos dias de vida que lhe quer dar, do mesmo modo fixou para cada um deles o número dos pecados que lhe quer perdoar, e completado esse número não perdoa mais.” Veja o que mais Santo Afonso diz nesta meditação.

Omnia in mensura et numero et pondere disposuisti― «Dispuseste tudo com medida e conta e peso» (Sab 11, 21).

Sumário. É sentimento de muitos Santos Padres, que Deus, assim como determinou para cada homem o número dos dias de vida que lhe quer dar, do mesmo modo fixou para cada um deles o número dos pecados que lhe quer perdoar, e completado esse número não perdoa mais. Quem sabe, meu irmão, se depois dessa primeira satisfação indigna, depois do primeiro pensamento consentido, depois do primeiro pecado cometido, não quererá o Senhor castigar-te com uma morte repentina? O que então seria de ti por toda a eternidade?

I. Se Deus castigasse desde logo a quem o ofende, de certo não se veria injuriado como o é atualmente; mas por isso mesmo que o Senhor não castiga logo e espera, os pecadores animam-se a ofenderem-no mais. É porém preciso atender bem, que se Deus espera e suporta, todavia não espera e suporta sempre.

É sentimento de muitos Santos Padres, de São Basílio, São Jerônimo, Santo Ambrósio, São Cirilo de Alexandria, São João Crisóstomo, Santo Agostinho e outros, que Deus, assim como determinou o número dos dias de vida, os grãos de saúde e de talento que quer dar a cada homem, assim fixou para cada qual o número dos pecados que lhe quer perdoar; cheio o qual, não perdoa mais: «Devemos ter por certo», diz Santo Agostinho, «que Deus suporta o homem até certo ponto, depois do qual não há mais perdão para ele: Nullam illi veniam reservavi».

E não foi ao acaso que estes Santos Padres assim falaram, senão baseados nas divinas Escrituras, que em vários lugares dizem claramente que, embora os pecadores não contem os pecados, Deus os enumera, para castigá-los, quando o número estiver completo: ut in plenitudine peccatorum puniat (II Mac 6, 14). De sorte que Deus espera até ao dia em que se complete a conta dos pecados, e então é que pune.

A Escritura oferece muitos exemplos de castigos semelhantes, principalmente o de Saul, que depois da última desobediência foi abandonado por Deus. Encontra-se também o exemplo de Baltazar, que estando à mesa profanou os vasos do templo e viu então uma mão escrevendo na parede: Mane, Thecel, Phares. Veio Daniel, e explicando estas palavras, disse-lhe entre outras coisas, que o peso de seus pecados já tinha feito baixar a balança da divina justiça, e com efeito, nessa mesma noite Baltazar foi morto… A quantos infelizes não sucede a mesma desgraça! Vivem muitos anos no pecado, mas quando completam o número que lhes foi fixado, são colhidos pela morte e precipitados no inferno. Ducunt in bonis dies suos, et in puncto ad infera descendunt (Jó 21, 13) ― «Passam os seus dias em prazeres e num momento descem à sepultura».

II. Há quem procure indagar o número das estrelas, dos anjos, dos anos que alguém terá; mas quem poderá jamais indagar o número dos pecados que Deus quer perdoar a cada homem? E por isso devemos tremer. Meu irmão, quem sabe se depois da primeira satisfação indigna, depois do primeiro pensamento consentido, depois do primeiro pecado cometido Deus ainda te quer perdoar? Quem sabe se não te sucederá o que sucedeu a tantos outros, que foram colhidos pela morte no mesmo instante em que estavam ofendendo o Senhor? E se tal acontecesse, que seria de ti durante toda a eternidade?

Graças, meu Deus! Quantos desgraçados, menos culpados que eu, estão agora no inferno, sem que haja para eles perdão ou esperança! E eu estou vivo ainda fora do inferno, com esperança do perdão e do paraíso, se eu quiser. Sim, meu Deus, quero o perdão. Arrependo-me de todo o coração de Vos ter ofendido, a Vós que sois a Bondade infinita.

Padre Eterno: respice in faciem Christi tui (Sl 83, 10), olhai para vosso Filho morto por mim na cruz, e em consideração dos seus méritos, tende piedade de mim. Protesto que antes quero morrer que tornar a ofender-Vos. Em vista dos pecados que cometi e das graças que me haveis feito, tenho suficiente motivo para temer que um pecado mais encha a medida e me faça condenar. Ah! ajudai-me com a vossa graça. De Vós espero luz e força para Vos ser fiel. Se prevedes que hei de tornar a ofender-Vos, fazei-me morrer neste instante, já que espero estar na vossa graça. Meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas e, mais que a morte, receio a desgraça de cair novamente em nossa inimizade. Por piedade, não o permitais. ― Maria, minha Mãe, tende compaixão de mim, ajudai-me, impetrai-me a santa perseverança.

Nota: Os devotos de Santo Afonso poderão hoje tomar a meditação sobre a sua confiança em Deus, se ainda não foi lida na terça-feira da 5ª. semana depois da Epifania. Para os seguintes meses do ano aconselha-se aos mesmos devotos, que fixem um dia para fazerem a sua meditação sobre uma virtude do Santo correspondente a cada mês. Do Santo Doutor pode-se dizer como de Jesus Cristo, que começou a fazer e a ensinar.


Santo Afonso Maria de Ligório. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Primeiro: Desde o primeiro Domingo do Advento até Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 269-272.