Do recolhimento do espírito: § I. Do amor à solidão

Nesta meditação, Santo Afonso fala sobre o amor à solidão. Nas palavras do próprio santo, “Três coisas se requerem para se guardar o recolhimento do espírito ou a contínua união da alma com Deus: a solidão, o silêncio e o andar na presença de Deus. “. Veja o que mais Santo Afonso diz sobre isso.

Três coisas se requerem para se guardar o recolhimento do espírito ou a contínua união da alma com Deus: a solidão, o silêncio e o andar na presença de Deus. Essas são aquelas três coisas que um anjo inculcou a S. Arsênio, dizendo-lhe: “Foge, cala-te e repousa”; com outras palavras: busca a solidão, guarda o silêncio e descansa em Deus, tendo sempre diante de ti o pensamento da sua presença.

Nos capítulos seguintes exporemos mais a fundo cada um desses três pontos.

§ I. Do amor à solidão

I. — 1) Todas as almas que amam a Deus sentem em si um forte atrativo para a solidão, porque sabem que Deus trata com muita familiaridade aqueles que evitam quanto possível o tumulto do mundo. “Ó feliz solidão, exclama S. Jerônimo, na qual Deus se entretém com grande amor, familiaridade e afabilidade com as almas que ama”. Deus não faz ouvir sua voz onde se passa o tempo em gargalhadas e inúteis palestras. “O Senhor não está na agitação” (3 Rs 19, 11). Ele mesmo diz por boca de Oséias: “Levá-la-ei  à solidão e aí falarei a seu coração” (Os 2, 14). Deus fala com a alma na solidão e de um modo especial a seu coração, fazendo-lhe ouvir palavras que a inflamam em seu santo amor. “Minha alma derreteu-se quando me falou o meu Amado” (Cânt 5, 6), diz a esposa dos sagrados Cânticos.

Como conta S. Euquério, perguntou uma vez uma pessoa que tendia à perfeição a um diretor espiritual o que deveria fazer para alcançar seu fim. Este deu-lhe a seguinte resposta: A solidão é o lugar onde se acha Deus. Na solidão facilmente se guarda a virtude; no trato com o mundo, porém, facilmente a perdemos. S. Bernardo diz que aprendeu mais a respeito de Deus e das coisas divinas na solidão, entre carvalhos e faias, do que nos livros e nas escolas dos sábios. Por essa razão sentiam-se os santos tão irresistivelmente atraídos a fugir do tumulto do mundo e a buscar a solidão; por esse motivo amavam tanto as grutas, os montes e os bosques. Isso já fora profetizado pelo profeta Isaías, quando disse: “A terra deserta e ínvia se alegrará, e a solidão exultará, e florescerá como a açucena; lançando germes copiosamente brotará e com intensa alegria e muitos louvores saltará de prazer… os seus mesmos habitantes verão a glória do Senhor e a magnificência de nosso Deus” (Is 35, 1-2). Com outras palavras: A solidão é uma fonte inesgotável de alegrias para as almas interiores: pela pureza e inocência de seus habitantes floresce a solidão como um lírio e dá frutos de todas as virtudes; essas almas felizes receberão a graça de contemplar a majestade de Deus e sua infinta beleza.

Para permanecermos unidos a Deus devemos continuamente lembrarmo-nos dele como dos bens infinitos com que compensa a seus fieis sequazes. Pelo comércio com o mundo, porém, se apagam essas verdades espirituais, pelas coisas terrenas que nos entram pelos olhos, e os bons sentimentos desaparecem de nosso coração. Por isso é impossível que se tenha uma vida verdadeiramente piedosa, não se amando a solidão e só encontrando gosto no trato com os homens, no fazer sempre visitas e recebê-las e em conversações mundanas.

Consequentemente, ninguém é mais digno de lástima do que uma pessoa que quer levar uma vida devota e que, para isso, já fez muitos sacrifícios e, contudo, passa uma grande parte do dia em vãs diversões, em gargalhadas e tagarelices e talvez até em conversações contra a caridade. Em vez de por toda a sua satisfação em se entreter em seu Deus, busca sua consolação em uma vida cheia de distrações e no convívio com homens mundanos, que não deixarão de envenenar seu coração com as máximas depravadas do mundo.Ela abusa, pois, do tempo que Deus lhe concede para sua santificação. Infeliz dela, como pode desperdiçar esse tempo precioso? Os santos estavam prontos a comprar pelo preço de seu sangue uma pequena parcela desse tempo! Oh! o que não dará ela uma vez, quando a morte estiver próxima, por um só dia, por uma só daquelas muitas horas que agora desperdiça com tanta leviandade!

2) Os mundanos fogem da solidão, e isso com toda a razão, porque no recolhimento são atormentados pelos remorsos de sua consciência. Eles procuram a sociedade e o tumulto do mundo, para que o rumor que ali existe os preocupe e encubra a voz de sua consciência. Os que, porém, têm a consciência em paz, gostam da solidão e se, às vezes, não podem evitar o borborinho do mundo, sentem-se incomodados, como o peixe fora d’água.

Não deixa de ser verdade que o homem preza o trato com os outros; mas existe talvez coisa mais bela que o comércio com Deus? Não se sente nenhuma amargura e nenhum enfado se se afasta da companhia dos homens para se entreter com Deus, nosso Criador. “A sua conversação nada tem de desagradável e a sua companhia nada de fastidioso, mas o que nela se acha é satisfação e prazer” (Sab 8, 16).

Sem razão alguma se diz que a vida solitária é uma vida triste; ela é antes um antegozo do paraíso, é um começo da vida dos santos, que acham uma satisfação indizível em se ocupar unicamente com o amor e o louvor de Deus. Isso nos ensina expressamente S. Jerônimo, que fugiu de Roma para se recolher a uma gruta em Belém, para aí gozar da solidão. “A solidão é meu paraíso”, escrevia ele depois.

O venerável Pe. Carafa, geral da Companhia de Jesus, dizia que não desejava coisa alguma deste mundo: mas se tivesse de desejar alguma coisa, seria então uma pequena gruta, um pedaço de pão e um livro de devoção, para que pudesse passar sua vida na mais rigorosa solidão.

Pode parecer-nos que os santos, na solidão, se acham inteiramente sós; mas não é assim: Nunca estou menos só que quando estou só, diz S. Bernardo, porque então estou na companhia de Deus, que mais me contenta do que a companhia de todas as criaturas juntas. Os santos parecem estar tristes e, contudo, não vivem na tristeza. Porque o mundo os vê afastados de todas as alegrias terrenas, tem-nos em conta de infelizes e desconsolados, mas o contrário é a verdade: eles gozam de uma paz imensa e contínua, segundo a expressão do Apóstolo (2 Cor 6, 10).

3) Para gozares dessa deliciosa solidão, alma cristã, não é preciso que te retires para uma caverna ou para um deserto: no meio de tua própria família a poderás achar. Ocupa-te com o mundo exterior só tanto quanto o exigem teus deveres de estado, a obediência ou caridade, e, dessa forma, viverás naquela solidão que convém a teu estado e que Deus de ti requer. O rei David sabia criar-se essa solidão no meio das mais importantes ocupações de seu governo: “Eis que me retirei fugindo e permaneci na solidão” (Sl 54, 8). S. Filipe Néri alimentava por algum tempo o pensamento de se retirar para um deserto; Deus, porém, recomendou-lhe que não abandonasse a cidade de Roma, mas que aí vivesse como se estivesse em um deserto.

Se, conforme o exposto, não é necessário que vivas continuamente na solidão, deves, contudo, cuidar em buscá-la todas as vezes que te for possível; ao menos deves amá-la, conforme as palavras de S. Lourenço Justiniano: “A solidão deve sempre ser amada, ainda que não sempre praticada” (De cast. con., c, 6). Se uma pessoa devota é obrigada a deixar a solidão para cumprir com os deveres de seu estado, que o faça então com toda a liberdade de espírito, sem se inquietar de forma alguma, pois, do contrário, mostraria um certo apego à sua vida recolhida, o que seria uma falta notável.

II. — 1) Até aqui só falamos da solidão corporal; vamos agora falar da espiritual, que é mais necessária que aquela, pois S. Gregório diz: “Que aproveita a solidão do corpo, se falta a do espírito?” (Mor., l. 30, c. 23). Que adianta, quer o santo dizer, habitar corporalmente um deserto, se a alma se apega às coisas deste mundo? “Uma alma livre de apego às coisas terrenas, diz S. Pedro Crisólogo, encontra a solidão até nas ruas e praças públicas”.

Doutro lado, que adianta permanecer sozinho em casa ou em uma igreja, se nosso coração se ocupa com as coisas deste mundo, que, com seu barulho, nos impedem de ouvir a voz de Deus? Disse uma vez o Senhor a S. Teresa: “Oh! com quanto gosto não falaria eu com muitas almas! o mundo, porém, faz tanto barulho em seus corações, que elas não ouvem a minha voz! Oh! se elas se afastassem um pouco do mundo!”

2) Procuremos, por isso, conhecer em que consiste a solidão do coração. Ela consiste nisso, que arranquemos de nosso coração todas as afeições que não se referem a Deus e que em todas as nossas ações tenhamos em vista o seu santo agrado.

O salmista exprime essa verdade da seguinte forma: “Que tenho eu no céu? E fora de ti, que desejo eu sobre a terra?… Vós sois o Deus do meu coração e minha partilha, Deus, para sempre” (Sl 72, 25). Em uma palavra, a solidão do coração consiste em se dizer: “Meu Deus, só a vós eu quero e nada mais”.

Alguns se queixam que não podem achar a Deus; a estes responde S. Teresa: “Desprendei o vosso coração de todas as coisas e buscai a Deus, que vós o encontrareis”. Para se buscar e achar a Deus, deve-se primeiro conhecê-lo. Como, porém, se poderá conhecer a Deus e sua beleza infinita, se se tem o coração preso às criaturas? Em um vaso de cristal, que está cheio de terra, não poderá penetrar a luz do sol; do mesmo modo não pode brilhar a luz divina em um coração que está cheio de amor pelas alegrias, riquezas e honras deste mundo. Isso nos dá Cristo a entender pela parábola da porta fechada: “Quando rezares, busca teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo” (Mt 6, 6). Com outras palavras: Para se poder unir a Deus na oração, deve-se recolher a seu próprio coração, que, segundo S. Agostinho (Manual, c. 30) é o quarto de que fala o Senhor, e fechá-lo a todas as afeições terrenas.

Esforça-te, pois, para viveres em solidão espiritual, se não te for possível a corporal, diz S. Bernardo. Mesmo quando te achares na companhia de outros para trabalhar ou te recrear, esforça-te por te conservar na solidão, isto é, recolhido em Deus; e ainda que corporalmente não te possas furtar à conversação, faze-o ao menos no desejo e intenção, permanecendo unicamente por ser isso agradável a Deus.

III. — 1) Deve-se aqui notar que, por solidão, não se deve entender a ociosidade, como se no recolhimento não se tivesse de fazer nada ou de pensar em coisa alguma. Deus quer que procurem a solidão os que o amam; não deseja, porém, que vivam ociosos. Alguns há que levam uma vida recolhida, mas, em sua solidão, não se ocupam com nada ou então com leituras frívolas ou outras coisas inúteis. Esses tais vivem na solidão, mas deverão dar contas um dia a Deus de sua solidão ociosa, como diz S. Basílio.

A solidão ociosa é-nos comum com os irracionais; a solidão em que nos ocupamos com estudos inúteis e trabalhos supérfluos é mundana; a solidão religiosa não é nem ociosa nem inútil, mas mui santa e proveitosa. As almas piedosas devem imitar as abelhas, que não se cansam de preparar o mel em suas células; não devem perder nenhum instante, mas estar sempre ocupadas ou com a oração ou com a leitura de qualquer livro útil ou com qualquer serviço correspondente a seu estado.

“A ociosidade é o princípio de todos os vícios”. Este provérbio se funda sobre uma sentença do Espírito Santo: “A ociosidade ensina muita malícia” (Eclo 33, 29). S. José Calazans costumava dizer: “O demônio sai à caça das almas ociosas”. Conforme S. Boaventura, o ocioso é atormentado com mil tentações, enquanto que quem está ocupado tem uma só a combater.

É impossível que se esteja sempre a rezar; por isso é preciso se dedicar também ao trabalho. Salomão louva sobremaneira a mulher forte, porque trabalhava em lã e linho (Prov 31, 13). S. Maria Madalena de Pazzi se sujeitava a todos os trabalhos do claustro, apesar da sua fraqueza corporal; era vista ora a varrer, ora a carregar água, ora a ajudar na cozinha. Seu biógrafo diz que ela sozinha trabalhava mais que quatro irmãs leigas juntas.

2) Seria um erro acreditar que o trabalho prejudica a saúde; pelo contrário, ele muito auxilia a sua conservação. Muitas vezes procuramos subtrair-nos ao trabalho não tanto por temor de prejudicar a saúde, como por medo do incômodo; quem, porém, olhar para Jesus crucificado, não temerá a fadiga. Uma freira chamada Francisca se queixava que suas mãos, pelo muito trabalho, estavam todas estragadas. Mas logo ouviu que o Salvador crucificado lhe dizia: Francisca, olha para as minhas mãos! poderás ainda te queixar?

3) O trabalho é, de resto, um meio precioso contra o enfado na solidão, assim como contra as tentações a que se está sujeito no recolhimento. Sentia-se uma vez S. Antão Abade tão horrivelmente atormentado por pensamentos impuros e desgosto da vida solitária, que já não sabia mais que fazer. Então apareceu-lhe um anjo e o conduziu a um jardim próximo; aí tomou uma enxada e começou a cavar a terra; em seguida orou por algum tempo; recomeçou depois disso o seu trabalho e novamente pôs-se em oração. Disso aprendeu o santo o que deveria fazer para se conservar contente na solidão e livrar-se das tentações, a saber, alternar a oração com o trabalho.

4) O trabalho, além disso, não impede, de forma alguma, o exercício da oração, se for empreendido sem cuidados excessivos e sem paixões. Vendo uma vez S. Bernardo a um monge que, mesmo durante o trabalho, não cessava de rezar, disse-lhe: Continua assim, meu irmão, e tem confiança, pois agindo assim ficarás livre do purgatório, depois da morte. Esse modo de proceder observa o mesmo S. Bernardo, como se conta em sua vida. Sem negligenciar os trabalhos externos, vivia continuamente recolhido em Deus. Dessa forma deve-se ocupar cada um internamente com Deus, enquanto externamente faz o seu trabalho; doutra maneira essas ocupações externas serão sem proveito para a vida espiritual e cheias de imperfeições. Nos Cânticos diz o esposo à alma: “Põe-me como um selo sobre teu coração, como um selo sobre o teu braço” (Cânt 8, 6). Primeiramente quer que o ponhamos sobre seu coração e então sobre seu braço, pois, se não se tem a Deus no coração, não se poderá tê-lo no braço, isto é, as obras externas não lhe agradarão. Se, porém, as obras externas procedem do amor, serão sumamente perfeitas, como diz S. Teresa.

5) Por isso estão em erro os que menosprezam o trabalho e querem se restringir unicamente à solidão; mas também erram os que se sobrecarregam com trabalhos externos de tal modo que não lhes resta mais tempo para o recolhimento de espírito. “Meu filho, diz o Sábio (Eclo 11, 10), não te empenhes em muitas coisas, pois, se multiplicares os negócios, não ficarás imune de culpa”.

Alguns há que se entregam de tal maneira ao trabalho começado, que não pensam em nada mais. Não resta dúvida que devemos executar com toda a diligência o que nos foi imposto, mas sempre com sossego e sem paixão, de forma que o nosso espírito possa se elevar a Deus de tempos a tempos. S. Antão diz que em todas as nossas ocupações externas, por mais urgentes que sejam, devemos conservar em nosso interior um quarto escondido, ao qual possamos nos recolher, estando cansados do trabalho, para aí nos unir com Deus. Por isso é de grande utilidade, ao começar o trabalho, elevar o nosso coração a Deus, por meio de atos de amor, de oferecimento, de resignação ou de qualquer outra oração e repetir isso muitas vezes no decurso do trabalho. S. Catarina de Sena sabia achar a Deus no meio dos inúmeros trabalhos que lhe impunham seus pais para demovê-la de seus exercícios de devoção; enquanto fazia externamente seu trabalho, guardava em seu coração, que ela chamava a sua cela, o mais perfeito recolhimento e se entretinha aí sem interrupção com seu mui amado Salvador.


Santo Afonso Maria de LIGÓRIO. Escola da Perfeição Cristã. Obra compilada dos escritos de Santo Afonso Maria de Ligório, Doutor da Igreja, pelo Pe. Saint-Omer, C. SS. R. Petrópolis (s. e.), 1955, p.251-256.