Jesus no deserto e as tentações das almas escolhidas

“Meu irmão, se o Senhor permite que sejas tentado, não desanimes, porquanto vê nisso um sinal de que ele te ama e te quer fazer mais semelhante a Jesus Cristo, que, como refere o Evangelho de hoje, foi também tentado.” Veja o que mais Santo Afonso diz nesta meditação.

"Temptation of Christ" - Ary Scheffer (1854)
“Temptation of Christ” – Ary Scheffer (1854).

Iesus ductus est in desertum a spiritu, ut tentaretur a diabolo ― «Jesus foi levado pelo espírito ao deserto, para ser tentado pelo diabo» (Mat 4, 1).

Sumário. Meu irmão, se o Senhor permite que sejas tentado, não desanimes, porquanto vê nisso um sinal de que ele te ama e te quer fazer mais semelhante a Jesus Cristo, que, como refere o Evangelho de hoje, foi também tentado. Esforça-te, porém, a exemplo do próprio Redentor, por empregar todos os meios para seres vencedor. Especialmente refreia as tuas pequenas paixões desordenadas, mortificando-as pela penitência, e recorre sempre a Deus pela oração contínua.

I. Os trabalhos que mais afligem nesta vida às almas amantes de Deus, não são tanto a pobreza, a enfermidade e as perseguições, como as tentações e as securas espirituais. Quando a alma goza da amorosa presença de Deus, todas as tribulações, em vez de a afligirem, mais a consolam, fornecendo-lhe a ocasião para oferecer a Deus algum penhor de seu amor. Mas ver-se pela tentação em perigo de perder a graça divina e temer na secura que já a perdeu, é isso uma pena demasiado amarga para quem ama deveras a Deus. – Observemos, porém que é esta a sorte comum das almas santas: Quia acceptus eras Deo, necesse fuit, ut tentatio probaret te (Tob 12, 13) ― «Porque eras aceito de Deus, por isso foi necessário que a tentação te provasse».

Quem foi mais santo do que Jesus Cristo? Todavia ele foi levado pelo espírito ao deserto para ser tentado pelo diabo. Em primeiro lugar, foi tentado de gula, porque «tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, teve fome. E chegando-se a Ele o tentador, disse: Se és Filho de Deus, dize que estas pedras se convertam em pães».

Depois foi tentado de presunção, porque «o diabo o transportou à cidade santa e O pôs sobre o pináculo do templo e Lhe disse: Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, porque está escrito: Recomendou-te aos seus anjos, e eles te levarão nas palmas das mãos, afim de que nem sequer tropeces numa pedra». Finalmente foi tentado de idolatria; porque o diabo, vendo-se vencido uma outra vez, «o transportou ainda a um monte muito alto, e mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e lhe disse: Todas estas coisas te darei, se prostrado me adorares».

Uma alma, pois, por se ver tentada, não deve ainda temer como se já tivesse caído no desagrado de Deus, que a quer tornar mais semelhante a seu Filho unigênito e dar-lhe ocasião para adquirir grandes méritos para o céu. Quoties vincimus, toties coronamur ― «Cada vitória é uma nova coroa», diz São Bernardo.

II. Os meios de que nos devemos servir para vencer as tentações, são os mesmos que nosso divino Redentor nos ensina com o seu exemplo no Evangelho de hoje. ― Cum ieiunasset quadraginta diebus ― Jesus jejuou quarenta dias. Para vencermos todas as tentações, e em particular a dos sentidos, é mister que nós também, especialmente neste tempo de Quaresma, mortifiquemos a carne pelo jejum, pela penitência, e pelo recolhimento, e que ao mesmo tempo avigoremos o espírito com meditações e orações, porque não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus.

Non tentabis Dominum Deum tuum ― «Não tentarás ao Senhor teu Deus». Para vencermos as tentações, devemos em segundo lugar evitar as ocasiões de pecado. Aqueles que se expõem voluntariamente aos perigos e não pretendem cair, tentam Deus para fazer milagres. A custódia dos anjos, diz São Bernardo, é prometida a quem caminha nos caminhos de Deus, viis suis, e não àquele que se expõe voluntariamente ao perigo de cair num abismo. ― Vade, Satana ― «Vai-te, Satanás».

Finalmente o terceiro meio para sairmos vencedores, consiste em expulsarmos o demônio inteiramente de nossa alma e em estarmos resolvidos a adorar a Deus nosso Senhor, e servi-Lo a ele só. Oh! Quantos há que não cuidam em refrear as suas paixões nascentes, e que imaginam poder servir a dois senhores. Mas depois, ao primeiro assalto mais forte de qualquer tentação, acabam por cair e perder-se eternamente!

Ó meu amabilíssimo Jesus, vejo que no passado caí e recaí tão miseravelmente, porque me descuidei de imitar os vossos divinos exemplos. Arrependo-me de todo o coração; peço-Vos perdão e prometo que para o futuro serei mais cuidadoso. Mas fortalecei a minha fraqueza. Eu Vo-lo peço pela mortificação que praticastes, abstendo-Vos por quarenta dias de toda a alimentação, e pela humildade que mostrastes, permitindo ao demônio que Vos tentasse como a qualquer outro filho de Adão. «Ó Deus, que purificais a vossa Igreja com a anual abstinência quaresmal: concedei à vossa família, que com boas obras execute o que de Vós deseja obter com a sua abstinência».[1] † Doce Coração de Maria, sede minha salvação. (*I 837.)


[1] Or. Dom. curr.


Santo Afonso Maria de Ligório. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo Primeiro: Desde o primeiro Domingo do Advento até Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 298-300.